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Com certeza essa é a primeira narração linear, e talvez a única, que farei nessa narração toda dessa minha vida comum e bastante monótona. Gosto das coisas livres, para que elas mesmas escolham onde querem estar. Não pareço muito uma tirana que gosta de ditar como as coisas devem ser ou estar, pareço? Espero que não. De qualquer forma, talvez essa seja uma  das narrações mais importantes que narrarei a vocês:
Não deve ser muito estranho para vocês que eu seja do tipo de pessoa que é fascinada por lojas de jardinagem, mesmo que eu não tenha um jardim ou alguma planta de verdade. É só um velho hábito que adquiri com a minha vó, ela sim tinha um jardim. Eu estava em uma loja de jardinagem que tem aqui perto de casa quando um rapaz uns 20 cm mais alto do que eu, cabelos escuros, algumas pintinhas na lateral do rosto e olhos azuis incrivelmente cristalinos e com uma pequena variação no tom de azul, esbarrou em mim acidentalmente:

-Desculpe-me. Eu estava distraído. Te machuquei?
-Não, está tudo bem. Não foi nada.
-Fico feliz então - disse ele esboçando um leve sorriso - comprando muitas coisas?
-Eu não tenho um jardim, só gosto da jardinagem.
-Que engraçado. Eu só conheci uma pessoa assim... Nadine? 

E a partir de agora irei tratar as pessoas da minha história pelo nome, inclusive eu mesma. Em partes por que cansei do mistério, mas por que também acho que vocês merecem saber toda a verdade.

-Como você sabe meu nome?
-Sou eu, Aurélio. Nós estudamos juntos no Ensino Médio, quero dizer nós até namoramos.
-Aurélio! Claro que me lembro - Sério que ele achou que eu esqueceria disso? Tolo. E eu não preciso dizer que nesse momento eu estava congelando por dentro ou preciso?
-Quanto tempo! Desde aquele dia, não é? - ele fez uma pausa nervosa e coçou a cabeça - Você está maravilhosa, de verdade. Lindíssima. O que tem feito? Na verdade, antes que possa me responder a essa pergunta, você tem tempo para um café? É melhor conversarmos em um lugar mais confortável do que essa loja, não acha?
-Estou livre para um café.
-Ótimo. Só preciso ir pagar essas coisas aqui - disse ele referindo-se ao pacote que tinha em mãos

***

-Então Nad, ainda posso te chamar assim? - perguntou ele logo após pedirmos nosso expresso numa padaria que tinha lá perto.
-Claro que pode Aurélio, você não deveria nem perguntar isso. Todos ainda me chamam assim.
-O que tem feito? 
-Eu sou fisioterapeuta.
-Não brinca.
-Pois é.
-Eu também.
-Você? Que era todo metido dizendo que seria médico - eu disse em um tom de "nem tão brincadeira assim"
-Depois de ficar dois anos no cursinho e não passar, eu desisti.
-Faz sentido. Um pouco de amor próprio, não é?
-Exato.
-Então, o que você comprou lá na loja?
-É um conjunto de sapinhos pequenos de jardim. Não tenho jardim, mas minha filha adora...
-Você tem uma filha?
-Sim. Você quer ver uma foto?
-Claro, adoraria - disse ele pegando o celular e mostrando uma foto de uma pequena menina com cerca de uns três anos de idade, com as mesmas pintinhas na lateral do rosto e olhos azuis que o pai - nossa, ela é linda.
-Loira como a mãe.
-A quanto tempo vocês estão juntos?
-Minha filha e eu? Cerca de uns três anos. 
-Não - eu disse rindo - você e a mãe dela.
-Nós não estamos juntos. Está vendo - disse ele levantando a mão esquerda bem a mostra - eu não uso aliança. Nós namorávamos, terminamos e então ela disse que estava grávida. E quando a Marisa nasceu, não tive dúvidas que era minha. Ela tem os meus olhos, com toda certeza - pequena pausa - você costumava ser apaixonada pelos meus olhos, você se lembra?
-Não teria como esquecer.
-Você ainda acha que meus olhos azuis são os olhos azuis mais bonitos que existem?
-Se eu não te conhecesse bem, diria que você estava flertando comigo.
-E quem disse que não estou?
-Aurélio...
-Vamos só conversar, está bem? 
-Claro.
-Então me diga, por quanto tempo você ainda manteve contato com o Heitor? Ele era um pouco mais velho que a gente, então quantos anos ele já deve ter hoje... uns 30? E o que ele fazia mesmo, Sociologia? - nesse momento preciso dizer que Heitor também é conhecido por vocês como Professor de História.
-História. Isso 30 anos. Acredita que ainda somos amigos? 
-Não brinca. Sabe, eu sempre morri de ciúmes de vocês dois.
-Por que? 
-Ele é boa pinta. E eu sempre soube que você se derretia por um cara inteligente.
-Mas você nunca se esforçou para ser um cara assim.
-Nad...
-Aurélio, o que estamos fazendo? Flertando? Depois de todos esses anos?
-Eu nunca deixei de te amar, você sabe disso.
-Eu também nunca deixei de te amar. Você é meu primeiro amor.
-E então que não podemos tentar de novo?
-Não! Você me traia!
-Eu era idiota, eu estava no Ensino Médio. Não sabia o que eu fazia.
-Você não entende a dor que me causou o meu primeiro amor dormir com todas só por que eu não dormia com ele.
-Você não esquece, não é?
-Eu sou mulher, não sou?
-Você deveria ficar com o Heitor. Ele é o tipo de cara certo para você. Sério. Eu falo para você como amigo. Aquele mesmo amigo que indicou "100 Anos de Solidão" só por que tinha um personagem com o meu nome lá. Fico impressionado que vocês não estejam juntos.
-Nunca rolou nada entre a gente.
-Eu não iria perguntar uma coisa dessas.
-Aurélio, vamos fazer o seguinte: vamos ser amigos. Eu quero muito ser sua amiga, durante muito tempo lamentei ter perdido contato contigo. Não quero perder de novo. Pode ser? 
-Claro. Qual seu número? - E então eu percebi que tinha algo que precisava ser feito, e eu iria fazer.

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