A primeira memória que eu tenho do Heitor é vê-lo sentado no fundo do ônibus lendo '1984' de George Orwell. Ele estava tão fascinado pelo livro que nem quando eu sentei do seu lado ele parou de ler. Não que eu sentando do lado dele fosse um motivo real de distração, mas ele nem ao menos piscou. Comecei a ler por cima do ombro dele e fiquei curiosa. Uns dois dias depois encontrei uma edição econômica na banca que tinha na frente da minha escola e comprei para ler quando tivesse tempo. Comecei a ler no caminho de volta para casa. Desencontrei com ele durante alguns dias e quando voltamos a nos encontrar ele já tinha acabado de ler '1984' e estava lendo o que me parecia ser o "Manifesto Comunista". Por algum motivo lamentei esse desencontro.
Mesmo assim ainda estava curiosa a respeito da história então o li no ônibus durante aquela semana. Na semana seguinte quando apareci sem livro algum e ele também nada no restou a não ser admirar a paisagem e observar as pessoas que entravam no ônibus. Era engraçado por que mesmo que ainda nós não conversássemos ele sempre sentava no mesmo lugar no fundo do ônibus e eu sempre sentava do lado dele. Na primeira vez foi por falta de opção enquanto nas demais foi por opção. O ônibus poderia estar vazio, mas eu sempre me dirigiria até o fundo do lado do universitário de óculos.
Um dia comecei a reparar que ele guardava o lugar para mim mesmo que não houvesse necessidade, não tinha ninguém no horário em que tomávamos o ônibus. Ele deixava a mochila no meu lugar e quando me via se aproximando tirava a mochila e a jogava no chão. Nos cumprimentamos com um discreto sorriso. Não sei o tempo exato que ficamos nessa. Um dia, eu me lembro que chovia naquele dia, de maneira bastante aleatória ele me cutucou e disse:
-Se eu soubesse que você tinha se interessado tanto por '1984' eu teria te emprestado o meu quando acabei de ler. Desculpa, não consigo parar de pensar nisso. Foi um desencontro tão interessante você começar a lê-lo logo depois que eu tinha acabado-o. Você gostou das partes que lia comigo aqui no ônibus então? - eu me lembro de ficar tímida nessa hora e corar como um pimentão.
-Como você sabia que lia ele por cima do seu ombro?
-Bem - disse ele ajeitando os óculos - você literalmente lia por cima do meu ombro. A propósito, seu perfume adocicado é muito bom.
-Ai meu Deus, eu estou tão envergonhada. Mil desculpas. Sério.
-Está tudo bem. Eu sou Heitor - disse ele estendendo a mão.
-Nadine, mas pode me chamar de Nad.
-Eu nunca conheci alguém chamada Nadine.
-Eu nunca conheci alguém chamado Heitor.
-Então Nadine..
-Nad - corrigi.
- Então Nad - disse ele frisando o nome - já ouviu falar do livro 'Revolução dos Bichos'?
-É do mesmo cara de '1984' né?
-Aham. É o máximo. Se você quiser posso te emprestar amanhã ou depois.
-Eu adoraria, mas você vai emprestar seu livro para uma desconhecida?
-Você não é uma desconhecida, você é a Nadine.
E depois disso vocês já conseguem imaginar o que aconteceu: viramos melhores amigos, passamos a nos encontrar fora do ônibus, paramos de pegar ônibus e essas coisas que acontecem conosco quando vamos ficando mais velhos. É legal como essa memória está viva, tanto em mim quanto nele, e vira e mexe nos pegamos falando nisso, mas a melhor parte da memória, desta memória em especial, é que ela não ficou enterrada no passado como algo distante, ela ainda é muito viva em nós dois: algumas noites, um pouco antes de irmos dormir, ele encosta na cama lendo algum pedaço aleatório do seu velho exemplar de '1984' enquanto eu leio por cima do ombro dele (só para não perder o hábito, confesso) com a única diferença que hoje ele me envolve com seus braços.